quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Constança

A Constança tinha longos caracóis feitos de raios de sol. Era fruto de um sonho de décadas, concretizado à estalada numa inseminação in vitrio.
Foi amada antes se quer de ser concebida. Planeada. Projectada. A mamã e o papá deram a mão na altura de escolher a célula fertilizada a ser injectada pela 15ª quinta tentativa no útero seco da mamã. A gravidez passou-se alimentada de torradas, chás, bombons e mantas, depois de tirada a baixa merecida. O parto deu-se na sala esterilzada do Drº Melo, que acompanhava aquele casal infértil desde o início daquela corrida. Cesariana para não magoar a bebé. Naquela dia, e naquela hora, para não massar a equipa médica ao fim de semana.
E nasceu divinalmente bonital aquela menina, desenhada e redesenhada depois de tantos anos de treino. A boquinha fazia beicinho desde o segundo que viu o mundo. Os olhos eram rasgados eram temperados com cor do mar. O cabelinho parecia uma penugem dourada, e as bochechas gorduchas davam-lhe um ar tão mais Dodot do que normalmente um recém nascido costuma ter.
A mamã e o papá explodiam de felicidade. Acarciaram a menina dos seus sonhos, bêbedos de alegria, extasiados de emoção. E prometeram-lhe a melhor vida, o mais promissor dos futuros, a mais preenchida história.
E por isso aos 5 meses iam todas as semanas com a menina à natação. O papá tirava fotografias, a mamã espetava a menina sobrepondo-se de forma histérica aos outros meninos da turma.
Aos 2 anos a menina já tinha visitado a catedral de São Pedro no Vaticano, e tocado às escondidas dos seguranças na Mona Lisa, no Louvre em Paris.
Aos 5 recitava poemas de Camões, sob o olhar babado dos papás, que impingiam o protagonismo da menina em todos os encontros de família.
No seu quarto, transformado pelos papás e pelos vovós no sonho da Leopoldina, não faltava o último top de gama dos brinquedos. E mesmo assim, a linda Contança, dos caracóis dourados e poemas de Camões recitados, gostava mais das bonecas de trapos que roubava à filha molata da sopeira da mansão, para depois rasgar em bocadinhos pequeninos.
A linda Constança cresceu, empurrada em nuvens sor de rosa pelos papás. E tranformou-se na mais bonita das jovens daquele bairro de classe média. Confirmou-o o José, depois de a beber no banco de trás do seu Porshe. E o Manuel. E o Fernando. E todos aqueles garanhões de hormonas saltitantes choravam à janela da bela Constança, na esperança de a cheirar só mais uma vez. Mas a menina dos cabelos de ouro entediava-se com rapidez e só provava novidades. Os papás envelheceram mais rápido do que o suposto, depois de uma vida inteira de escravatura para conseguirem ceder aos caprichos da linda Constança.
A Constança dos cabelos dourados entrou na vida deitada num berço fofo e de ouro. E saiu de seringa no braço, depois de beber avidamente um pouco da Sida do João.

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