quarta-feira, 29 de abril de 2015

Deixar de fumar - take 1

Abro os olhos. Consigo ouvir a minha pulsação na máquina. Ritmada. Pausada. Pi. Pi. Pi.
Oiço também a bomba que me dá ar. Demoro alguns segundos a voltar a mim. Tento mexer os braços, não consigo. E a máquina. Pi. Pi. Pi.
Na minha cabeça os meus filhos. Mãe quero comer os teus cabeios. Sorrio. O som da xuxa, a forma como me cheira deitado ao meu lado de pijama. Janela aberta para as fadas entrarem, mãe hoje as fadas vão dar taaanto pójinho mágico a eu para eu ficar tanto gande. A mão morena do Manuel. Dadadada. Beijos nos refegos que cheiram a Johnson “bons sonhos”.
E olho à volta. Só consigo mexer os olhos. E a bomba pausada. Pffff. Pausa. Pfffff. Oiço vozes mas não as entendo.
As festas nas escolas. Manuel a andar, taralhoco, olhos tão grandes e vivos, sedentos de novidades que encontra nos paus, no mar, nas formigas no chão.
Salpico a escrever pela primeira vez mãe adoro-te.
No peito sinto agulhas, a garganta seca, quero virar a cabeça. Não me consigo mexer. Tenho tanto sono. E a máquina. Pi. Pi. Pi. Agarro-me de novo àquela linha estranha e boa de pensamentos. Os olhos cor de mel do meu salpico. Eu que lhe ralho, não podes comer tantas coisas boas, ficas doente. Oh mãe, fico taanto godo que não conxigo correr? O Manuel gatinha atrás de mim. Amo-os tanto. É tão estranho este amor, como se fosse uma continuação de mim, mas melhor e não minha.
- Mãe.. mãe?
Quem me interrompe? Estou tão feliz aqui, na lembrança. E então a voz do médico. Terminal. O meu adónis a engolir lágrimas ao meu lado. Querendo ser forte para mim. E eu focada. Terminal. Terminal. Terminal. Termina aqui? Calendário de tratamentos. Cigarro filho da puta. As dores. O cabelo na banheira. Quero chorar mas os tubos não me deixam mexer. Isto só pode ser um sonho, isto é um sonho. Quero  pegar nos filhos dos meus filhos.
- Mãe.
- Deixe a mãe salpico…
E eu quero responder, olhá-lo, falar-lhe, mas tenho tubos, e a máquina. Pi. Pi. Pi. Come-me os segundos que se vão.
As xuxas no chão. O Manuel no meu colo, morde-me o queixo. E o salpico. Mas eu poxo ir cuntigo para o xéu mãe?
E o céu, existe?
- Não salpico. Mas a mãe vai estar sempre aqui. No seu coração.
Abro os olhos. A máquina. Pi. Pi. Pi. Vejo-os ali. Os meus três homens. A minha família que o meu cigarro destruiu. E o arrependimento grita mais alto que a máquina. Pi. Pi. Pi.
- Mãe?
Olho para ele. Caracóis de sol despenteados. Chora com o narizinho colado a mim. O Manuel dorme ao colo do meu marido.

Fecho os olhos e adormeço num sono que não é meu.

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